Algumas das alterações introduzidas ao Código dos Contratos Públicos são contrárias às regras comunitárias e existe o risco de Bruxelas contestar, defendem os especialistas.
E vão mais longe argumentando que as mudanças são mesmo contrárias à Constituição portuguesa. Em causa está a possibilidade de, com a nova lei, as entidades adjudicantes poderem reservar contratos para micros e PME ou para empresas com sede e atividade efetiva no território da entidade intermunicipal em que se localize a entidade adjudicante.
Este mês entra em vigor o diploma que estabelece medidas especiais de contratação pública para projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR) e de bens agroalimentares. Mas também as alterações ao Código dos Contratos Públicos. Um diploma que teve de regressar ao Parlamento porque o Presidente da República o vetou por considerar que era necessário um maior controlo da legalidade como contrapartida para uma maior simplificação.
“A reserva de contratos” em causa “viola princípios gerais de Direito da União Europeia, nomeadamente o princípio da não-discriminação em razão do território ou o princípio da igualdade de tratamento”, sublinha ao ECO Nuno Cunha Rodrigues. O professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, admite que “há colegas com posições divergentes”, mas na sua avaliação “o novo regime previsto no artigo 54.º-A, bem como no artigo 113.º, n.º 4, poderá vir a ser questionado pela Comissão Europeia e, mais tarde, a ser considerado desconforme ao Direito da União Europeia, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”.
Pedro Cerqueira Gomes concorda em absoluto com esta interpretação da lei e vai mais longe: “Estas alterações, além de contrárias ao direito comunitário, são contrárias à Constituição portuguesa”. O advogado da Cerqueira Gomes e Associados defende que em causa está a violação do princípio da igualdade e da não discriminação. “Há uma discriminação de categorias de empresas”.
O artigo em causa (54.º A) admite que “as entidades adjudicantes podem reservar a possibilidade de ser candidato ou concorrente” às “micro, pequenas ou médias empresas, devidamente certificadas nos termos da lei” para “contratos de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços”, com limitação de valores e para “contratos de empreitada de obras públicas ou de concessão de serviços públicos e de obras públicas de valor inferior a 500 mil euros”.
A lei reserva ainda a possibilidade de estabelecer contratos com “entidades com sede e atividade efetiva no território da entidade intermunicipal em que se localize a entidade adjudicante, em procedimentos promovidos por entidades intermunicipais, associações de autarquias locais, autarquias locais ou empresas locais para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços de uso corrente de valor inferior aos limiares” definidos.
A criação destas reservas tinha na sua génese “tratar de forma igual o que é diferente, numa lógica de preocupação social”, explica Pedro Cerqueira Gomes, ou seja, discriminar positivamente as empresas que, por exemplo, empreguem pessoas com deficiência. “O legislador usar essa regra para privilegiar as PME e empresas da região é fazer disto uma bandeira política. O poder local vai esfregar as mãos“, diz o também professor da Universidade Católica.
Catarina Pinto Correia concorda também que “as preferências nacionais e regionais podem ser violadoras dos princípios comunitários e até dos princípios constitucionais”. “É verdade que o objetivo é proteger as compras locais, mas não faz muito sentido na maior parte dos casos”, defende a advogada da Vieira de Almeida. Na sua opinião, este tipo de reserva poderia fazer sentido ao nível da compra de produtos perecíveis, que até se poderia enquadrar na estratégia comunitária do Prado ao Prato, mas não a nível geral.