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No meio milhão de mulheres a quem foram colocados implantes mamários em França, 53 foram diagnosticadas com linfoma anaplásico de células grandes. A maioria das afetadas tinham implantes em envelope texturizado, que representam 85% do mercado francês. Este facto, revelado na quarta-feira, pela agência francesa do medicamento, leva-a a reavaliar, a partir de fevereiro de 2019, a segurança desses produtos médicos. Para tal, vai reunir um comité de peritos encarregados de auscultar as pacientes, os profissionais de saúde e outros intervenientes nesta matéria, para obter um esclarecimento global sobre a utilização deste tipo de implantes. O anúncio surge oito anos após o escândalo da firma francesa de implantes mamários que usava silicone industrial, muito mais barato, em vez do silicone médico, e que, tendo afetado 30 mil mulheres só em França (e mais muitos milhares noutros países), poderá dar lugar ao maior processo judicial coletivo de sempre naquele país.
A notícia sobre os implantes mamários e a reavaliação anunciada pela agência francesa surgiu, talvez não por acaso, escassos três dias antes da publicação, por vários meios associados ao Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, de uma investigação mundial sobre a indústria dos implantes. E que revela um panorama aterrador de desregulação e incúria, abrangendo não só os implantes mamários como pacemakers, próteses ósseas, bombas de insulina e uma série de outros dispositivos médicos que em alguns casos nem sequer haviam sido testados antes da introdução no mercado ou que, tendo apresentado problemas, continuaram a ser usados por inação dos reguladores ou inexistência de um sistema eficaz de alertas.
O britânico The Guardian, umdos jornais envolvidos na investigação, que foi levada a cabo por 252 jornalistas de 59 organizações em 36 países, revela que "só no Reino Unido foram reportados 62 mil "incidentes adversos" relacionados com dispositivos médicos entre 2015 e 2018. Um terço dos incidentes teve consequências importantes para o paciente e 1004 resultaram em morte. Nos EUA, a Food and Drug Administration (FDA, a agência americana do medicamento) coligiu 5,4 milhões de relatórios de "efeitos adversos" na última década, alguns dos quais respeitando a fabricantes que reportaram problemas noutras zonas do mundo. Estes relatórios incluem um milhão e setecentos mil casos de danos graves e quase 83 mil mortes. Em cerca de meio milhão de casos foi preciso retirar o implante.
Estatísticas astronómicas, comenta outro dos jornais associados à investigação, o francês Le Monde, que sublinha ainda assim tratar-se de "uma ínfima parte da realidade": se os EUA têm um sistema de recolha para tudo o que se relaciona com estes dispositivos, "em todo o resto do mundo, ou quase, a falta de transparência domina, geralmente com o pretexto do segredo comercial. Dados cruciais para os pacientes e os profissionais de saúde são ou confidenciais, portanto inutilizáveis, ou mesmo, em alguns países, inexistentes. Hoje pode-se determinar a origem de uma lata de refrigerante nos confins do Congo graças a um código de barras, mas não a de um implante defeituoso no peito do nosso pai".
Em França, por exemplo, conta o Le Monde, "uma lei de 1978 permite teoricamente acesso aos documentos administrativos – equivalente à famosa lei da liberdade de informação anglo-saxónica. Apesar de muitas respostas negativas, incompletas e censuradas, a investigação permitiu perceber que temos um sistema de vigilância cego aos danos provocados pelos dispositivos médicos". Aliás, em toda a Europa, assevera o diário francês, a recolha de dados de incidentes só se iniciou no princípio do século. "Na Alemanha, não se tinham registado sequer cem em 2000, quando atualmente são mais de 14 mil anualmente; no Reino Unido, eram quase 20 mil em 2017." Em França, prossegue a peça do Le Monde, a agência nacional da segurança do medicamento (ANSM) agrupa essa informação numa base de dados intitulada MRVeille [em português, "maravilha"], que, apesar de muito incompleta, revela que o número de incidentes duplicou em dez anos, com mais de 18 mil casos em 2017 e cerca de 158 mil em dez anos."
De acordo com a base de dados americana, que será a mais completa e na qual, calcula o consórcio de investigação, o número de incidentes quintuplicou em dez anos, os implantes que criam mais problemas são as bombas de insulina equipadas de um medidor de glicose (cerca de 421 mil incidentes, resultando em 1518 mortes e 95 584 feridos). Os dispositivos que causam mais mortes são os aparelhos de diálise automatizada em caso de insuficiência renal, com 2624 mortos em dez anos.
Mas os problemas de informação não se atêm apenas à desproporção entre o número real de problemas e a percentagem reportada (que pelo menos um estudo americano crê ser apenas 1%); quando se descobre que um determinado tipo de implante está a dar problemas, os profissionais de saúde têm também dificuldade em contactar os pacientes que o receberam. Ou sequer saber quantos são, como se passou no citado caso dos implantes mamários em silicone industrial: quando o Ministério da Saúde francês quis saber quantas próteses dessas haviam sido implantadas e em quantas mulheres, não foi possível descobrir. Um antigo responsável da agência francesa do medicamento, Pierre Faure, recorda o caso ao Le Monde: "Fomos incapazes de dar essa informação. É dramático, mas isso não serviu para nada. Não somos ainda hoje capazes de saber."
Aparentemente, esse caso ocorrido há oito anos não terá servido para mudar radicalmente os processos e o sistema. Aliás, existindo na Europa a obrigação, para os fabricantes, de reportar "incidentes graves", esta é, reconhecia em 2012 a própria Comissão Europeia, apenas estabelecida em "termos gerais". O que pode querer dizer não só que os critérios usados não serão uniformes como pode haver deficiências na informação transmitida. Nos EUA, por exemplo, até 2016 a FDA permitia os fabricantes submeter a informação sobre deficiências e incidentes relacionados com implantes mamários de forma "resumida" e não pública. Quando o modelo de reporte exigido mudou, o número cresceu avassaladoramente, passando de casos de lesões para mais de 4500 em 2017 e mais de 8000 no primeiro semestre de 2018, de acordo com os cálculos do consórcio.
Em declarações ao The Guardian, o presidente do Royal College of Surgeons [homólogo da nossa Ordem dos Médicos], Derek Alderson, certifica que há suficientes incidentes com dispositivos para "justificar a necessidade de uma mudança drástica na regulação, incluindo a criação de registos nacionais mandatórios para todos os dispositivos implantáveis. Em contraste com o que se passa no setor do medicamento, muitas inovações cirúrgicas são introduzidas no mercado sem informação de testes clínicos ou de comprovação do regulador. O que põe em risco a segurança dos pacientes."
*in Jornal Publico 25/11/2018